Ela havia dito que aquele mendigo lançado ao chão, aos farrapos, dormindo sob o sol escaldante de quase meio-dia — lixo-humano, como ele havia se referido por brincadeira em tom irônico, por certo protesto íntimo —, era alguém que aprendia ali, em sua condição de miséria de indigente; decerto, sendo o que parecia ser, estaria sonhando naquele momento com um alimento quente, que lhe confortasse o estomago, ou uma bebida que o trouxesse, magicamente, de volta à vida, e o salvasse do inferno que o sol exagerado proporcionava a todos, sendo mendigos ou não. A sua ressurreição se daria por uma moeda, que lhe garantiria um copo de vida; e a aprendizagem dura foi um tema rápido e instantâneo a eles, que passaram por ali em segundos, sem ao menos supor que, a qualquer hora daquele mesmo dia, aquele sujeito desvalido que jazia no chão da calçada procurando a sombra do muro do cemitério do qual visitaram, poderia, em sua suscetibilidade de homem à margem da sociedade, sofrer uma agressão e morrer; mas o ponto principal disso tudo não seria sua morte exatamente, seria que ele ouviu o que foi dito pelos dois que passaram ao seu lado, naquela manhã de sábado — Ele ouviria, e se lembraria, em seu ultimo alento de vida, dessas duas vozes que passaram —; o sujeito lembraria e levaria consigo um último afeto por quem não conhecia. Seu sofrimento foi pressuposto e não seria difícil escolher uma canção que fosse tema, quando aquilo que se viu pareceu pesaroso e doeu ofuscado pelo sol, que não se mostra muito diferente do que foi semana passada e do que poderá ser amanhã senão quando se faz um passeio como aquele. Então seria essa uma canção desoladora, contudo, apenas fazendo com que respingue em uma lembrança futura. O castelo abandonado. Seria assim a lembrança imaginária de seu fim.Mas o individuo parecia desmazelado demais para que ouvisse o que foi dito a seu respeito — que estava ali para aprender, se redimir em sua vida na figura de mendigo, e que cada um, assim como ele, precisa passar por um tipo de aprendizado diferente na vida —, é em semelhante falta de percepção que as pessoas prosseguiam lanchando nas mesas do bar, pensou ao estirar as pernas doloridas e latejantes sobre a cama, e ter se lembrado também, que a sugestão dela, para tomarem um ônibus ao invés de caminharem, foi boa, e que se seguida teria sido melhor. — Mas a falta de percepção pode ter muitas razões! E uma delas, pode muito bem ser o conforto, o conforto de estar ao lado de quem agrada e que dá quase que absoluta certeza de que se pode dizer uma loucura qualquer, sem que se seja ignorado, ou então, ter um simples riso agradável como resposta condizente ao que foi dito; como piada, como uma bobagem a mais, mas que, entretanto, tinha um pequeno relampejo de tensão, medo ou alegria não declarada em verdade.
A latência das pernas na escuridão de um quarto parece não valer nada quando um dia próximo a findar pelo ponteiro sobre o 12, diz ter rendido boas risadas, e interessantes discussões sobre a natureza morta, a beleza pálida, e rostos macabros de meninos na pinacoteca; ainda mais, quando o que resta de um dia agradável é uma lembrança engraçada, como a lembrança do ultimo passeio que fizeram e misteriosamente foram parar em um restaurante que se denunciava anti-higiênico pelas moscas que reinavam com absoluta pomposidade, e onde as garçonetes entregavam o seu desleixo pelo modo do qual se vestiam, e onde eles acabaram comendo o que não desejavam de verdade; tudo porque escolhemos demais, pensou consigo — um riso no escuro —, mas como é que podemos ter tamanha qualidade de nos metermos em lugares assim? Lugares onde as pessoas podem muito bem supor coisas estranhas sobre nós, e nos julgar, porque a garçonete podia muito bem julgar naquele momento, podia muito bem pensar consigo: “Mas que juventude estranha é essa de hoje! Em meu tempo, saíamos para comer uma pizza, ou simplesmente bebermos cerveja, mas não, me parece que as coisas mudaram; a pedida hoje é arroz, feijão, salada, frango e farofa. Eis a modernidade dessa juventude! Aceitam passivamente a oferta da farofa, talvez seja falta de dinheiro...” Mas a imagem do que foi comido no novo passeio sobrepôs esta idéia, sobrepôs até que então lhe viesse a extravagante imagem de um prato preenchido por Ketchup, um prato branco, transbordante de Ketchup, e a voz do copeiro que detrás do balcão dizia: “Estranha essa pedida! Geralmente o querem em sua embalagem convencional, em um recipiente propício, mas um prato! Diferente sua amiga, hein?!” Mas o que houve foi um mal entendido, não foi isso que pediu! Riram-se os dois, após ela retornar do banheiro, pois quando pediu o Ketchup, foi nas pressas de se encontrar com ele, daí o mal entendido talvez.Então um prato como aquele diz a todo instante impedindo a chegada de um sono concreto: tudo pode muito bem não passar de mal entendido! O que houve foi um mal entendido, pelo que, apressadamente foi dito, ou por um problema inicial de audição, ou ainda, os motores dos carros na rua. Foi essa a pequena confusão de um de seus passeios, e que de maneira nenhuma, poderia se resumir no prato, ou naquele condimento, por mais difícil que fosse conter a risada. E a farofa? Por que havia farofa nisso tudo? Em um turbilhão de imagens, rostos desfigurados, pernas latejantes, silhuetas elegantes, altos edifícios, e uma sensação de multidão, meio a vozes ininteligíveis, no escuro de seu quarto, como entre anúncios luminosos de um centro comercial? Ou na idéia de que, ao mendigo, ela, a farofa, talvez fosse um luxo? E os mortos do cemitério? Pois mesmo, os dois, não vendo as lapides famosas das quais desejavam, puderam se impressionar na lembrança de uma farofa, que não tinha ligação alguma com crisântemos, ou com as grades que possibilitavam que os dois, em mistura de espanto e alegria, mirassem lá dentro, dentro das covas. E a moça da entrada, vendendo aquelas flores fúnebres? Talvez louvasse farofa quando chegasse cansada em casa à noite e se preparasse para o noticiário, na esperança da morte de alguém de renome, para que pudesse vender. — Não leve isso à mal, moça da farofa! A luz do quarto está apagada — Sim — pensava agora, sem saber se era sonho, ou se era lembrança, se estava aqui ou se ainda estava lá, ao lado dela no ônibus, quando, ao se despedirem, quase tiveram um encontro dos lábios, que quase se tocaram em um ligeiro engano da direita com a esquerda da face —, louvemos todos a farofa em prol de uma amizade sincera! Ela possibilita a falta da vergonha. Louvemos a farofa, pois é ela quem nos acalma e nos diz: nesta nossa relação há um companheirismo que difere, há algo que foge completamente do que se podia pensar, algo que oscila entre um sábado e outro, e que congela na noite em que não se reparou se o céu estava estrelado ou não, porque as pernas latejavam demais para isso; latejavam demais e diziam que a farofa era o ponto culminante da ficcionalidade de um relacionamento, de uma amizade que se tornava tão consistente quanto a própria iguaria, quanto a própria farofa poderia parecer.
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